Sócrates educador: Alcibíades entre a política e a filosofia

 

Jorge Barbosa Junior *

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Resumo: Visa-se no presente artigo à articulação de alguns apontamentos sobre a construção discursiva da imagem de Alcibíades nos dois diálogos platônicos que levam seu nome, especialmente no que concerne ao eixo filosofia/política.


Palavras-Chave: Sócrates, Alcibíades, Paidéia.

 

Alcibíades é certamente uma das figuras mais importantes no cenário pós-pericleano da Guerra do Peloponeso. Jovem tutelado pelo próprio Péricles e participante nos círculos de atividades dos aristocratas de sua época, seria de se esperar que fosse a encarnação dos valores heróicos do “homem belo e bom”. Entretanto, sua participação no escândalo da desfiguração das hermas e subseqüente exílio, seu alinhamento, mais ao final da guerra, com interesses espartanos e seu apoio à malograda expedição siciliana o comprometeram diante de seus concidadãos na Atenas da “democracia radical”. O objetivo do presente artigo é comparar elementos nas construções discursivas de Alcibíades realizadas por Platão nos diálogos que têm o nome do general.

Em ambos os diálogos com o nome do estratego, volta à baila a intricação entre a filosofia e a “arte do político” sobre a questão de fundo da possibilidade de ensinar a virtude àqueles que (ainda) não a possuem. No Alcibíades II, o plano de fundo do diálogo que a prece de Alcibíades no templo, interceptada por Sócrates, que leva à interpelação se os homens devem solicitar aos deuses um conteúdo determinado, e.g., a tirania ou o poder absoluto ou a riqueza. A um Alcibíades em idade política muito ávido por responder que sim, Sócrates opõe que o conhecimento divino está para o humano numa escala tal que aquilo que pedimos aos deuses nem sempre se revela o melhor para nós a longo prazo, conforme demonstra a imprecação de Édipo contra seus filhos e o subseqüente conflito entre Etéocles e Polinices, tratado na tragédia.

O conhecimento humano de Alcibíades, por sua vez, se opõe ao conhecimento divino do Sócrates do Alcibíades I, que, apesar de acompanhar à distância os passos do jovem amado, só se aproxima quando seu daimon o permite; ou seja, quando o jovem, como dito, na idade política, passou já da flor da efebia e não é mais cortejado por outros pretendentes, de forma que Sócrates é tudo o que lhe restou no campo afetivo-político. Neste sentido, um diálogo tácito se estabelece com o rapaz desmesurado que figura no Banquete, que, em meio a um furor quase dionisíaco, irrompe na comemoração fazendo um discurso no qual celebra Eros sob a figura de Sócrates, ou vice-versa.

A idade torna Alcibíades um fruto pronto para ser colhido na seara da virtude. Os dois diálogos de Alcibíades situam-se neste meio de caminho, nesta bifurcação em que se abrem possibilidades para o futuro: Alcibíades já não é mais presa da húbris juvenil, que, do contrário, poderia contaminar o próprio Sócrates, e por isto o daimon deste pede que se afaste; e ao mesmo tempo não é um político ou um homem pronto, ponto ideal para a injunção da paidéia socrática. A exortação do mestre à reflexão, as perguntas que levam, por meio da aporia, a refletir sobre a arte do político: o conhecimento (domínio) que o médico tem de sua arte (techné) não permite que o paciente lhe peça o tratamento mais prazeroso; assim como a melhor música é aquela que tem o maior grau de qualidade das musas (musicalidade, harmonia) é necessário que a arte da condução de homens seja pensada como campo particular (conforme exemplos do Alcibíades I). O pressuposto de qualquer conhecimento verdadeiro é, no entanto, a renúncia à falsa pretensão de saber: é este todo o movimento do Alcibíades I –Sócrates destrói por aporia a retórica sofística que, de outra forma, tem a performance designada para o sucesso na assembléia. A partir da consciência de sua ignorância, Alcibíades poderia construir a si mesmo como condutor de homens através do conhecimento obtido pelo caminho socrático, caminho este de ordem necessariamente ética.

Eis que se introduz aqui a dupla apologia/ironia: na leitura platônica do pensamento socrático é impossível ensinar a virtude, afinal. Este é todo o tema da discussão travada no Meno: a virtude como todo conhecimento (mathesis) é memória do que é contemplado pela alma no mundo das idéias, tema que retorna no último livro da República a propósito do mito de Er e que parece estreitamente conectado com uma citação no trecho-núcleo do Meno a que já nos referimos: as almas expiam suas almas no Hades e as melhores tornam-se sábios e governantes. Prova de que a virtude não pode ser ensinada é que os filhos de Temístocles nenhum se mostrou à altura da sucessão do pai.

Existe uma falha na pedagogia pericleana, incapaz de educar os próprios filhos e o tutelado, que Sócrates tenta suprir pela exortação ao conhecimento de si. O elemento apologético: Sócrates não é o responsável por Alcibíades, mas tenta “consertá-lo”. A ironia trágica consiste em que o primeiro engana-se com a mensagem de seu daimon e, como na tragédia, precipita-se numa queda. Alcibiades, incapaz de conhecer a si mesmo, torna-se um escravo do povo ao invés de um condutor de homens.


Bibliografia

BENSON, Hugh H. (ed.). A companion to Plato. Oxford: Blackwell Publishing, 2006.

CANFORA, Luciano. O mundo de Atenas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

KRAUT, Richard (ed). The Cambridge Companion to Plato. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.

 

Jorge Steimback Barbosa Junior - Lattes

Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ